Lentamente, aquela ilusão diurna, com Marieh e o sartânio de mãos dadas na floresta, se desfaz. A mente de Anoriah volta a enxergar a escuridão da realidade noturna no meio da floresta e a de Veothar a escuridão de sua cegueira. O meta-humano recolhe a arma e volta a iluminar o elmo, dando novamente luz turquesa à noite.
- Também viste o que vi então – perguntou afirmando Anoriah.
- Eu vi. Eles projetaram em minha mente, assim como na tua, não para nossos olhos. Coincide com o sonho que Monsenir me descreveu.
- Meu tempo terminou. Preciso voltar para a base - alerta Anoriah. - Dentro do Onicom, você pode fazer o que precisar fazer. Lembre-se. Eles penetraram em sua mente. Você tem o caminho de volta a eles aberto. Antes de ir encarnado no corpo de Baltazar, pode mais uma vez sondar a base e até localizar este aliado. Mas preciso dizer, é perigoso – alerta o meta-humano.
O cansado Veothar acena com a cabeça, demostrando que estava ciente dos perigos.
O cilindro flutuante se aproxima ao máximo do chão, chegando a encostar sua lisa superfície à terra coberta de vegetação. Abre-se um portal nele. Veothar sobe lentamente na curvatura da base do cilindro, que serve de acesso ao compartimento interno.

- Que tudo dê certo! - fala Anoriah - Esta não é uma tecnologia feita para humanos, mas para meta-humanos. Ajustei o Onicom da maneira que combinamos com Doutora Eliar, de acordo com o que ela mesmo imagina ser a melhor forma de você usá-lo.
- Não te preocupa. Sei dos riscos. – e antes de entrar por inteiro na cápsula, Veothar vira-se para Anoriah. – tenho um favor para te pedir.
- O que?
- Ao levar Monsenir de volta ao Templo dos Ancestrais, guarde um pequeno tempo para escutar o ator.
- Ator?
- Você entenderá.
O cilindro fecha-se hermeticamente com o Veothar dentro. Está pronto para mais uma viagem ao invisível. Mas desta vez, será mais intensa, deliberada, consciente, diferente do que acidentalmente vinha acontecendo com ele: agora é uma tecnologia construída por uma inteligência viva que vai conduzir essa viagem.
Naqueles poucos segundos que se vê sozinho dentro do Onicom, antes de o cilindro começar os procedimentos para reverter sua consciência para uma experiência em outra camada da vida, ele rememora o que já viveu com Doutora Eliar e os Roedores da Evolução.
- Tua cabeça é diferente, Samir. Não conheço uma outra como a tua – falou Doutora Eliar naquela madrugada, há pouco mais de dois meses.
- Mas o que que eu vou ganhar com isso? – perguntou naquele momento o relutante Veothar dentro do mesmo tanque que o manteve vivo, em coma, durante mais de 30 anos.
- Eu não sei ainda o que vais ganhar. Não sei nem se alguém nessa era vai ganhar alguma coisa com isso. – então a chefa da missão dos Roedores da Evolução, muitas vezes ríspida e grossa, mas sempre mais sincera do que o trato dos gentis muitas vezes pede, segura firme na mão do mensageiro do divino. – olha, Samir, tu sabes que eu não sou de esconder a verdade, por mais que doa. Isso aqui vai ter um risco pra ti, pra mim, para o Baltazar. Mas se der certo do jeito que acredito que vai dar, a droga que vai entrar no teu sangue, junto com o placen no teu pulmão, vai reverter tua consciência, assim como de um meta-humano.
- Eu lutei muito para voltar à vida. Se eu morrer agora, te caço do outro lado!
- Pode me caçar! – fala Doutora Eliar sorrindo, apertando mais ainda a mão de Veothar. - Me mata se quiseres, é teu direito. E sei que podes fazer isso do outro lado. Até muito mais. Conheço as tuas atividades mentais quando estás com a consciência revertida muito mais que qualquer um. E sei do que és capaz. Não faria isso se não soubesse. Se tudo der certo, vais interagir com Baltazar em um espaço reverso da vida. Um espaço virtual que só uma mente revertida meta-humana poderia acessar conscientemente. E só mentes humanas como a tua poderia também, por tudo que ela é e por tudo por que ela passou desde que entraste em coma.
- Eu vou confiar em ti! – devolve Veothar depois de uma silenciosa e preocupada troca de olhar com a cientista.
- O risco da perda da tua vida, que seria uma perda imensa, é muito menos provável que o ganho que vamos ter. E o ganho é enorme! vem para toda a raça humana deste nosso planeta aqui. Um ganho negado por quem veio de fora.
A alma de Veothar trouxe de volta à memória, em poucos segundos, o que na matéria havia acontecido em tantos minutos. Parecia se preparar para voltar ao tempo sem tempo, no invisível.
Um colete cervical envolve seu pescoço enquanto o cilindro se enche de placen, do mesmo modo como aconteceu há dois meses, no entanto, com uma tecnologia meta-humana genuína, e não um remendo de destroços reunidos pelos Roedores.
Do colete cervical, milhares de micro agulhas penetram os vasos sanguíneos em diferentes espessuras e profundidades. Ele sente a dor, leve, mas incômoda, e sabe que a pior sensação está por vir. A vertigem nauseante da droga que vai direto para seu sistema nervoso somada com a sensação terrível de afogamento do placen.
Não sabia se ia sobreviver a mais essa experiência no Onicom. Mas guardava em si a mesma confiança passada pela Doutora Eliar naquela madrugada dois meses antes, até que o placen chega em seu nariz e boca, levando seu instinto a fazer sua respiração prender e lutar contra aquela substância líquida. Ao mesmo tempo, sua consciência vai se perdendo pelas drogas.
Debate o que há de solto em seu corpo: pernas, braços, cintura, menos o tronco e cabeça, fortemente afixados pelo colete cervical. Mas isso só antes das drogas entorpecerem por completo seus músculos, de forma que nariz e boca já não conseguem mais evitar o insuflar forte e traumático do líquido que acaba inundando a garganta, invadindo por completo a barreira da glote, machucando a mucosa do esôfago e enchendo novamente os pulmões.
Mas esta última grande agonia já não foi sentida por sua consciência. Ali ele já estava de passagem para outra camada da existência, no reverso da vida.
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