O que a memória teima em esquecer é o que o sonho traz à tona. É bem assim com o ex-soldado Monsenir. Sonha com a guerra, justamente o que não quer lembrar. É uma metonímia mal remendada de batalhas que viveu - com as quais se cala para si mesmo e para o mundo - misturadas, agora, com as memórias que o meta-humano lhe apagou da consciência .
Neste sonho, ele corre. Corre muito. Carregando o peso do traje de batalha, da arma e de Marieh no colo. Foge dos sartânios. Não sabe porque. E por que Marieh está neste sonho tumultuado?
Corre pela cidade devastada, ofega, vence as calçadas, a rua, os destroços, o peso do corpo de Marieh, foge dos tiros, das bombas, do cheiro de asfalto queimado, do fogo, da água que jorra dos canos estourados. Mas não sabe porque: nesse sonho, acha que tudo se passa em Insag, como se lá houvesse guerra, prédios, bombas, cidade... Vê de relance Nelis correndo, Mishna, Cassandro... Até tropeçar no próprio passo corrido e se derramar no chão confuso de concreto triturado pelas bombas. Rola junto com Marieh em meio a uma neblina espessa de poeira que deixa tudo numa monocromia bege.
Ela se projeta um pouco mais a frente. Ele tenta se recompor, se preocupa com ela, não consegue enxergar direito em meio a todo aquele pó de prédios pulverizados. Vai até Marieh. Está desacordada. O que ela faz nesse sonho? E sente que a terra que está sob ele agora é o chão de Insag...
- Do que tanto foge, Monsenir? A voz vem de trás, metalizada, ele a conhecia, é do sartânio. Vira-se para vê-lo e não o vê.

Olha novamente para frente, engatinha até Marieh, a alcança, está mergulhada, como ele, no bege da poeira misturado à fumaça. Para. Se dá conta que é um sonho. Olha em volta... volta-se novamente para o sartânio. Não o vê, só ouve.
É só um sonho... ele sabe que é um sonho. Isso o conforta e dá a ele uma súbita segurança. Já teve outras tantas vezes seu sonho invadido pela comunicação dos Escorpiões que monitoram Insag. Mas, desta vez, sentia-se mais seguro.
- Estás te escondendo? Do que tens medo? Do que tu foges?
- Este é meu sonho. Tu sabes, já me encontraste aqui diversas vezes. Eu estive nessa guerra e há muitos anos ela está em mim.
A batalha se espalha em torno. Ouve os barulhos, os gritos, os tiros, as explosões, mas nada os atinge. Monsenir se levanta enquanto vira-se novamente para ver Marieh. Ela não está mais lá.
- Onde está o teu amigo Veothar? Pergunta o sartânio. O que vocês fizeram?
Monsenir se recompõe e volta sua atenção para o alienígena com quem deveria batalhar se aquele sonho fosse a realidade de 40 anos atrás. Mas agora, seus instintos o fazem muito mais um político do que um soldado.
- Não está funcionando.
Monsenir olha para todos os lados, tentando identificar de onde ele vem.
– O que queres que eu faça? Conserte? – dentro do sonho, recobra a consciência da vigília. No entanto, é incapaz de lembrar dos últimos acontecimentos que viveu quando acordado. Não lembra onde está Veothar. Credita esta falta de memória ao próprio sonho, que tantas vezes nos encortina a consciência.
Então, em meio à bruma espessa, vê os pequenos pontos de luz de algo que caminha em sua direção, que são parte do uniforme da Aliança Escorpião.
O soldado alienígena se coloca ereto, no máximo de sua altura, forçando Monsenir erguer a cabeça para manter-se olhando para ele sem recuar nem se intimidar.
O sartânio surge em meio à poeira, enorme, uniformizado para a guerra, ameaçador, fumaçando.
Monsenir tira os olhos dele, coloca a grande arma nas costas pela alça, leva a mão direita ao bolso, pega a caixa de cigarros; encontra depois o isqueiro em outro bolso; despretensiosamente se concentra em escolher um dos cigarros, colocá-lo na boca e acendê-lo. Dá uma tragada forte, solta a fumaça, e fala em tom de decepção.
- Que merda de tecnologia é essa de vocês?
Demora um tempo ali, olhando para o sartânio e balançando negativamente e lentamente a cabeça. - Não podem perder o Veothar de vista assim. Nem tão pouco a mim. Como querem manter o controle aqui se nem com implante nas nossas cabeças conseguem nos localizar?
Cobertos de poeira, o gigante sartânio ouve calado o Monsenir em sua frente, baforando fumaça de fumo para um lado e autoconfiança para o outro. - Astozeu já sabe dessa falha? Quer que eu fale com ele sobre isso?
Monsenir jogava o jogo do pacto.
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