A casa de saúde da roda 5 da tribo Insag fica a apenas uns 200 metros do lar dos Nasir. Mishna não demorou 10 minutos para percorrer o caminho. Está um pouco hesitante na porta de sua própria casa, protegida da chuva por uma capa impermeável feita de fibra de arlepa, árvore abundante na região. Quem a viu ali, a princípio, não entendeu porque uma senhora de 58 anos permanecia parada, na chuva, à porta de sua própria casa. Não entendeu, mas certamente preocupou-se, afinal qualquer acontecimento na casa dos Nasir atrai a atenção de toda a tribo. Ainda mais nesses últimos 3 meses.
Mishna leva aos pulmões uma quantidade suficiente de ar que lhe dê mais coragem no peito, abre a porta da choupana de madeira e entra. Não tira a capa molhada, apenas o capuz que lhe cobre a cabeça. Passa pela sala de estar rangendo o chão propositalmente para anunciar sua chegada, invade o corredor e chega até a porta do quarto de Marieh onde pára novamente. Até congela por um breve instante o movimento de seu braço... Prossegue e bate à porta levemente pedindo permissão para entrar. Entra sem a permissão.
É o quarto de uma garota de 15 anos de Insag, que pouco lembra o quarto de uma garota de 15 anos do meu mundo. Não tem os mimos, as cores e a infância. Mas há a sensibilidade e a feminilidade produzidas pela própria menina já amadurecida pelo ritmo de vida desses tempos difíceis, não só para a tribo, mas para todo o planeta Sideron. Essa sensibilidade é particularmente desenvolvida em Marieh pela sua inata habilidade para as artes de maneira geral.
- Marieh! – Mishna chama ainda postada à porta do quarto, mas a menina continua escrevendo em sua escrivaninha, como de hábito. Ela insiste – Marieh, sua irmã quer lhe ver... Mishna agora se aproxima da menina de forma lenta e firme. Senta-se na cama ao lado da mesa.
- Minha peça ganhou corpo, tia. Já estou no terceiro capítulo. O pessoal vai gostar! - Marieh responde indiferente à pergunta da tia.
Mishna então, num movimento seguro, mas não menos carinhoso, tira o lápis das mãos de Marieh, segura em suas duas mãos e a coloca de frente, de modo que possa dispor de toda a tenção da menina.
-Marieh... Escuta! – a senhora dá um tom mais ríspido às suas palavras - Ela está morrendo! Entende? Morrendo! Sua irmã está muito mal. Marieh não tira os olhos de sua tia. Agora não tem como fugir da conversa. Não tem como ignorar a situação. – Se você não for ver Agnar, a dor no seu coração vai durar pra sempre, ouviu! Ela está mal há 3 meses, e há 3 meses ela não lhe vê. Agnar precisa de você, Marieh. Agora!
Marieh fugia de todo modo da situação até aquele presente momento. Sua relação fechada com sua irmã durante toda a vida não abriu espaços para expressão de sentimentos. Uma relação silenciosa, de um exagerado respeito a Agnar, chefe da tribo e chefe da sua casa. Não foi capaz de entender, porém, que, naqueles 3 meses, Agnar precisou dela. Não sabia como iria reagir ao ver a irmã frágil e não queria enfrentar a sua falta de reação naquela situação. Aquilo a obrigaria, pela primeira vez, a expressar seus sentimentos por Agnar. Aquilo seria inédito com a irmã. Preferiu esperar sua melhora para falar com ela como sempre falou: de modo respeitoso, com sorrisos previstos e gestos contidos, deixando todos os seus sentimentos bem dentro de si, como sempre fazia. Não porque queria, mas porque não sabia lidar com a irmã de outra forma. Nem sabia exatamente que sentimentos tinha e guardava por ela. Expressava tudo que pensava apenas nas histórias que escrevia, e que não sabia se Agnar gostava delas de fato ou apenas as elogiava para não prolongar uma conversa.
Agora, porém, Marieh percebe que a situação é mais singular do que esperava. Agnar está morrendo. Nunca mais irá falar novamente com ela. Nem sob gestos contidos.

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